segunda-feira, 11 de maio de 2015

A LEITURA E A ESCRITA ENTRE ESPINHOS E ASAS


          Às vezes nos pegamos lendo histórias alheias sem nos preocuparmos com a escrita das nossas próprias histórias, sem nos atentarmos em nos lermos, sem direcionarmos nossos rabiscos, nossos borrões, as pontas das flechas que neste caso podem ser nossos olhos e não somente nossas mãos. O que falta ou faltaria para nos lermos? O que falta ou faltaria para não sermos somente traço constante de cópia? Se não falta ou faltaria nada, o que sobra ou sobraria para nossos olhares se sensibilizarem com o que não está diante deles?
     Os livros aparentemente quando os tocamos não têm espinhos, inicialmente podemos apalpá-los, cheirá-los, guardá-los no bolso, na mochila sem que nos sangrem as mãos e sem que saiam voando em qualquer direção. Sim, quando fechado parece não ter espinhos e nem asas.
        Quais livros que se abrem para nós? Ou mesmo aqueles livros que abrimos para nós, sangram ou voam? 
        Quando folheamos páginas invisíveis não temos como saber se há ou não a existência de espinhos, se sangram, se voam, se correm, imediatamente as páginas invisíveis não nos dizem muita coisa. Aliás, o imediatismo nestas possíveis leituras e escritas do visível e do invisível chega somente como uma grande dose de morfina na veia, ou seja, independentemente se os livros ou olhares ainda estão fechados e não sabemos  se sangram ou voam, por hora dou-lhes pitacos para que não deixem o tal imediatismo influenciá-los, ele veio para que nossa dormida seja guiada apenas para uma dormida, apenas para uma dormida, apenas...
       Ao nos dispormos em abrir olhos e livros, estamos nos dispondo ao sangue e as asas, isto é, à leveza e à tonelada, ao soco no tórax e ao ósculo na face, à tubaína de saquinho e ao veneno das celas geladas, ao odor de incenso de sândalo e ao gás de pimenta, não só sangue e não somente asas, com livros e olhos abertos, não só, não só...
      Com ouvidos abertos e olhos atentos podemos ver e ouvir ou ouvir e ver o Sr. Sereno do grupo Fundo de Quintal cantar que “Ser poeta é cortar carambola em forma de estrela/ Quem dificilmente consegue obtê-la/ Faz o coração em forma de maça” ou Carlos Eduardo Taddeo cantando 

“A era contemporânea com seus rifles e tocas ninjas
Deu luz no solo segregado, a era das chacinas
Depois das 10 todo excluído, vira alvo vivo
Candidato aos Clá-Clá-Bum e velório coletivo
O pedido do secretário de segurança é especifico
Soldados atenção! Sem testemunha e feridos
Abatam pelo cabelo, pela roupa, pela cor
Só cuidado com a laje, com cinegrafista amador
Da um vazio vê que ainda não fiz o escrito
Com o poder de evitar os enterros coletivos
Impedir que os antigos vizinhos de rua
Depois dos Bum se tornem vizinhos de sepultura.”

       Podemos dizer também que se torna um grande atentado quando temos que ler uma obra considerada clássica por obrigação, seja para o vestibular, para uma prova na escola, para um concurso de mestrado, porém necessitamos de tais reflexões para podermos observar como a sangria destes espinhos pode reverberar em potência, seja esta potência para determinados fins ou para indeterminados processos de um meio ou início.
      As leituras podem trazer escritas engajadas ou não, as escritas podem trazer leituras engajadas ou não. O que seria engajamento literário? Quais os pontos de vista? Quais os pontos de partida? A complexidade do que não pode ser raso ou oco muitas vezes não precisam ser compreendidas e sim vivenciadas por cada leitor e cada ser que se dispõe a escrever. 

       Silvia Castillón em seu livro, “O direito de ler e de escrever” nos diz que
     “Um dos problemas fundamentais reside no fato de que as leitura tem sido promovida como algo de que se pode facilmente prescindir, como um luxo de elites que se deseja expandir, como leitura “recreativa” e, portanto, supérflua. E isso numa sociedade em que, segundo as estatísticas, 70% da população se encontra abaixo dos níveis de pobreza ou pobreza absoluta, população para qual basta e sobra apenas televisão para recrear-se, algo que não exige nenhum esforço de quem já tem feito demais para conseguir sobreviver.” 
      Os questionamentos e as críticas não excluem de maneira alguma a liberdade de criação, desde que o sujeito ou a sujeita tenham consciência do porque estão questionando e criticando.
       Paulo Leminski, por exemplo, ofusca e colori nos pensamentos ao mesmo tempo quando adentramos em seus espinhos 
“Sol
Lua
Por que só um  
De cada 
No céu
Flutua”

         E a palavra? Quais asas, quais espinhos nos atravessam diante da palavra?
As vozes que não deveriam ser caladas diante às barbáries cometidas pelos que se dizem educadores e educadoras no Brasil e mundão afora ressurgem através do corpo, das ações, do grito que não cabe mais dentro de um corpo cheio que insistem em fazê-lo vazio. Assim sendo, a CorpOralidade proporciona novas leituras de seres que não permanecem imersos ou não querem permanecer imersos nas obras em que continham espinhos e nas obras que só continham asas. 
       Bia Bedran em seu livro “A arte de contar histórias” ressalta a importância da oralidade para transformarmos memórias vivas em vivas memórias, que não somente as leituras literais nos proporcionam espinhos ou asas. 
     “Câmara Cascudo denomina “escritores verbais” aqueles que de geração em geração persistem, com sua voz invocadora, em ressuscitar na fórmula viva do processo oral o que não deve morrer no esquecimento”.
        A leitura e a escrita partindo do ponto de vista literário ou do ponto de vista da memória estão rodeadas de aromas, temperos e sensações que a certeza ou a busca pela certeza nunca será capaz de identificar minunciosamente os detalhes da simplicidade, isto é, enquanto alguns ditos educadores ou educadoras continuarem colocando a bola debaixo do braço e deixarem de brincar na rua quando contrariados, jamais poderemos fazer embaixadinhas e levantar a bola para crianças, jovens e adultos marcarem golaços e comemorarmos juntos.
        Com livros abertos ou livros fechados, com olhos atentos e ouvidos abertos continuemos sangrando e voando para nos aproximarmos de sentimentos diversos que as leituras e as escritas podem nos dispor. Que venham mais espinhos e asas.


CHELLMÍ * Graduado nas ruas pela Universidade do Asfalto e da Terra Batida, Mestre em Vagabundagem pelos locais mais remotos de São Paulo e atualmente é Doutorando em Malandragem Social pela Universidade Invisível que está situada no Estado do Pensamento.