quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

ALGUNS SOPROS DE UM VELHINHO DESORGANIZADO QUE JAMAIS TEVE A PRETENSÃO DE SE “REORGANIZAR”.


ALGUNS SOPROS DE UM VELHINHO DESORGANIZADO QUE JAMAIS TEVE A PRETENSÃO DE SE “REORGANIZAR”.
                                           Chellmí – Jovem Escritor Paulista – 01.12.2015


            Em um dia de desespero assim como outros tantos de sua existência, o velhinho teimou novamente em sentar em frente ao espelho e refletir sobre sua desorganização.

            O velhinho de aparência robusta e feição rabugenta, muito raramente sorria, seus momentos de suposta alegria estavam geralmente atrelados a cachaça ou a cerveja.

            Ele costumava dizer para meia-dúzia de pessoas próximas que já não conseguia se encontrar consigo mesmo e que além de se sentir um anônimo em seu próprio eu, ele não suportava mais conviver consigo nem sequer mais um segundo.

            Seus dias eram longos demais. O velhinho não dormia nem mesmo o mínimo necessário para aguentar o tranco do trabalho no dia seguinte. O velhinho tinha convicção de seu estranhamento consigo e com o mundo, estava ciente das suas limitações, mas mesmo assim teimava em se confrontar com seu espelho.

            O velhinho contava em seus momentos de despejo de mares salgados num corpo amontoado de terra, que pensou ter vivido sua juventude plenamente. Naquela época, o velhinho dormia menos que os dias atuais, suas bolinhas brilhantes demoravam a esconderem-se nas noites ensolaradas, sim, isso mesmo, ele dizia que pensava estar vivo por conta de suas noites ensolaradas.

            O pequeno linha de frente destas palavras talvez tenha pensado por algum momento que poderia ser intocável, ser iluminado, ser um furacão, ser areia do fundo do mar, ser um sorriso aberto até seus últimos dias nos terrenos que parte da humanidade julga conhecer, mas hoje, velhinho, já não pensa como antes, se pensa, só consegue transpor aproximadamente 5% do que lhe sangra, 1% do álcool que lhe faz ranger os dentes e talvez, talvez os outros 94% numa escala inútil de 100% estejam escondidos entre o amarelo de seus dedos e o acumulo de bitucas e cinzas amontoadas num recipiente metálico.

            Alguns chegavam a falar que o velhinho se sacrificava em dormir em cama de pregos por opção, outros costumavam bater em suas costas oferecendo colchões macios, já outros juravam enxergar no velhinho uma espécie de vontade, uma espécie de sabedoria, uma espécie vivacidade, enquanto outros sacavam que o velhinho não passava de fruta podre na lateral da feira. O velhinho a todo instante torcia para ser ensacado e triturado e então ser jogado num lugar em que ninguém mais pudesse pensar em nada a seu respeito. Mesmo com toda a angústia de um segundo passado, de uma flecha lançada e de uma oportunidade perdida, o infeliz do velhinho sentava-se na frente do espelho.

            Em seu tempo de fragilidade adulta se meteu em lugares nunca antes imaginados. Entocou-se em bolhas coloridas viajando num universo singular e construindo a imagem de guris e gurias em seus braços lhe chamando de pai. No fundo ele carregava a frustração em peneira de buracos milimétricos para que tal viagem pudesse ser um tipo de substância que lhe deixava em estase por algum tempo dentro da bolha colorida. E a peneira lentamente naqueles momentos derramava frustrantes águas salgadas novamente no corpo amontoado de terra.

            O velhinho fez questão de ocupar quadrados incolores para flutuar em utópicas lutas aos olhos dos sábios entendedores da vida. Seus ventos mudavam de direção nestes quadrados quando ainda tinha o mínimo de coerência para jogar tinta onde estava incolor. Muitas vezes o velhinho teve a necessidade de mostrar ao mundo aquele ambiente em transformação, porém, foram incontáveis as vezes em que o velhinho teve vontade de largar as cores para que os sábios entendedores da vida continuassem propagando suas sabedorias em seus quadrados sem cor. O velhinho contava que a cada minuto recebia uma martelada no peito e uma pancada na cabeça, um tipo castigo dolorido que não sabia explicar, mas que alimentava sua utopia.

            O velhinho de mãos de lisas escondia os calos na alma e de vez em quando girava a chave.

            Ele dizia que seu corpo era uma linha amarrada no estirante de uma pipa mal confeccionada que em raros momentos de ventania deixava de fazer barriga e se mantinha firme, reta e com uma força incontrolável, mas que eram tão raros, tão raros estes momentos de ventania que mal podia se deleitar do planar e logo se deparava com os apuros de uma pipa pensa. Assim o velhinho se referia ao seu corpo, horas ação e horas reflexão. Empinava sobre uma corda bamba, a laje era muito cheia de concreto. Firmeza demais nunca lhe fez bem, dizia ele.

            Na multidão erguia sua bandeira de palavras, na conversa não tirava sua bandeira da mochila. Na conversa ele era olho atento e ouvido aberto, na multidão era farelo do resto de lanche dos sábios entendedores da vida.

            O velhinho, cara de pão com ovo, rabugento e de sorriso amarelo após alguns goles parecia ter um pouco de criticidade, apesar de enfatizar a todo o momento que não passava de macha irremovível de avental surrado.

            Em meio a tantas palavras de amargura e angústia, o velhinho se posicionava contra qualquer tipo de injustiça feita com o povo que lhe circundava, o povo que corria em suas veias saltitantes. Policiais que atuam como marionetes da opressão, fazendo dos seus pares seus principais alvos, professores pelegos, governantes detentores de poderes odiosos, seres individualistas que propagam a distorção do coletivo. O velhinho não suportava.  Ele fazia questão de se desprender do anonimato do seu eu, para concentrar em seus frágeis punhos e esqueleto que se arrastava, energias que só poderiam existir no ato do corpo estar em sintonia com o palpitar do coração, que nem ele com toda sua ignorância e nem os sábios entendedores do conhecimento da vida poderiam se meter a besta de procurar explicações.

            Na capital em que o sangue escorre desde o nascimento até o dia em que a terra cobre o paletó de madeira, o velhinho de feição pesada, desacreditado de quase tudo em sua passagem neste terreno, contava que em seu pequeno coração nunca conseguiu, por mais que tentasse, colocar um cadeado, girar a chave e lança-la num universo de chaves perdidas.

            Aos sábios entendedores de suas próprias vidas e das vidas alheias, aos ignorantes rabugentos como o velhinho e aos que são bigornas e se passam por pena de pavão, fica o desafio de arriscar a idade do velhinho, se ele está vivo, se ele realmente existiu ou existe e se podem recolher os cacos do espelho em que o velhinho teimava em se deparar ou sentar diante do mesmo espelho e procurar a porcentagem de teimosia que pode existir em cada ser.

            Antes de partir, o velhinho pediu para avisar que se as línguas dos sábios entendedores da vida estiverem queimando para responder prontamente, que os mesmos as colocassem na água estocada da chuva, ou fizessem uma vaquinha entre eles para comprarem litros d’água de alguma empresa da família dos governantes detentores de poderes odiosos.

            Sábios? Velhinho? Bigorna? Pena de pavão?

            Por onde andam?