ALGUNS SOPROS DE UM VELHINHO
DESORGANIZADO QUE JAMAIS TEVE A PRETENSÃO DE SE “REORGANIZAR”.
Chellmí – Jovem Escritor Paulista –
01.12.2015
Em um dia de desespero assim como
outros tantos de sua existência, o velhinho teimou novamente em sentar em
frente ao espelho e refletir sobre sua desorganização.
O velhinho de aparência robusta e
feição rabugenta, muito raramente sorria, seus momentos de suposta alegria
estavam geralmente atrelados a cachaça ou a cerveja.
Ele costumava dizer para meia-dúzia
de pessoas próximas que já não conseguia se encontrar consigo mesmo e que além
de se sentir um anônimo em seu próprio eu, ele não suportava mais conviver
consigo nem sequer mais um segundo.
Seus dias eram longos demais. O
velhinho não dormia nem mesmo o mínimo necessário para aguentar o tranco do
trabalho no dia seguinte. O velhinho tinha convicção de seu estranhamento
consigo e com o mundo, estava ciente das suas limitações, mas mesmo assim
teimava em se confrontar com seu espelho.
O velhinho contava em seus momentos
de despejo de mares salgados num corpo amontoado de terra, que pensou ter vivido
sua juventude plenamente. Naquela época, o velhinho dormia menos que os dias
atuais, suas bolinhas brilhantes demoravam a esconderem-se nas noites
ensolaradas, sim, isso mesmo, ele dizia que pensava estar vivo por conta de
suas noites ensolaradas.
O pequeno linha de frente destas
palavras talvez tenha pensado por algum momento que poderia ser intocável, ser
iluminado, ser um furacão, ser areia do fundo do mar, ser um sorriso aberto até
seus últimos dias nos terrenos que parte da humanidade julga conhecer, mas
hoje, velhinho, já não pensa como antes, se pensa, só consegue transpor
aproximadamente 5% do que lhe sangra, 1% do álcool que lhe faz ranger os dentes
e talvez, talvez os outros 94% numa escala inútil de 100% estejam escondidos
entre o amarelo de seus dedos e o acumulo de bitucas e cinzas amontoadas num
recipiente metálico.
Alguns chegavam a falar que o
velhinho se sacrificava em dormir em cama de pregos por opção, outros
costumavam bater em suas costas oferecendo colchões macios, já outros juravam
enxergar no velhinho uma espécie de vontade, uma espécie de sabedoria, uma
espécie vivacidade, enquanto outros sacavam que o velhinho não passava de fruta
podre na lateral da feira. O velhinho a todo instante torcia para ser ensacado
e triturado e então ser jogado num lugar em que ninguém mais pudesse pensar em
nada a seu respeito. Mesmo com toda a angústia de um segundo passado, de uma
flecha lançada e de uma oportunidade perdida, o infeliz do velhinho sentava-se
na frente do espelho.
Em seu tempo de fragilidade adulta
se meteu em lugares nunca antes imaginados. Entocou-se em bolhas coloridas viajando
num universo singular e construindo a imagem de guris e gurias em seus braços
lhe chamando de pai. No fundo ele carregava a frustração em peneira de buracos
milimétricos para que tal viagem pudesse ser um tipo de substância que lhe
deixava em estase por algum tempo dentro da bolha colorida. E a peneira lentamente
naqueles momentos derramava frustrantes águas salgadas novamente no corpo
amontoado de terra.
O velhinho fez questão de ocupar
quadrados incolores para flutuar em utópicas lutas aos olhos dos sábios
entendedores da vida. Seus ventos mudavam de direção nestes quadrados quando
ainda tinha o mínimo de coerência para jogar tinta onde estava incolor. Muitas
vezes o velhinho teve a necessidade de mostrar ao mundo aquele ambiente em
transformação, porém, foram incontáveis as vezes em que o velhinho teve vontade
de largar as cores para que os sábios entendedores da vida continuassem
propagando suas sabedorias em seus quadrados sem cor. O velhinho contava que a
cada minuto recebia uma martelada no peito e uma pancada na cabeça, um tipo
castigo dolorido que não sabia explicar, mas que alimentava sua utopia.
O velhinho de mãos de lisas escondia
os calos na alma e de vez em quando girava a chave.
Ele dizia que seu corpo era uma
linha amarrada no estirante de uma pipa mal confeccionada que em raros momentos
de ventania deixava de fazer barriga e se mantinha firme, reta e com uma força
incontrolável, mas que eram tão raros, tão raros estes momentos de ventania que
mal podia se deleitar do planar e logo se deparava com os apuros de uma pipa
pensa. Assim o velhinho se referia ao seu corpo, horas ação e horas reflexão.
Empinava sobre uma corda bamba, a laje era muito cheia de concreto. Firmeza
demais nunca lhe fez bem, dizia ele.
Na multidão erguia sua bandeira de
palavras, na conversa não tirava sua bandeira da mochila. Na conversa ele era
olho atento e ouvido aberto, na multidão era farelo do resto de lanche dos sábios
entendedores da vida.
O velhinho, cara de pão com ovo,
rabugento e de sorriso amarelo após alguns goles parecia ter um pouco de
criticidade, apesar de enfatizar a todo o momento que não passava de macha
irremovível de avental surrado.
Em meio a tantas palavras de
amargura e angústia, o velhinho se posicionava contra qualquer tipo de
injustiça feita com o povo que lhe circundava, o povo que corria em suas veias
saltitantes. Policiais que atuam como marionetes da opressão, fazendo dos seus
pares seus principais alvos, professores pelegos, governantes detentores de
poderes odiosos, seres individualistas que propagam a distorção do coletivo. O
velhinho não suportava. Ele fazia
questão de se desprender do anonimato do seu eu, para concentrar em seus frágeis
punhos e esqueleto que se arrastava, energias que só poderiam existir no ato do
corpo estar em sintonia com o palpitar do coração, que nem ele com toda sua
ignorância e nem os sábios entendedores do conhecimento da vida poderiam se
meter a besta de procurar explicações.
Na capital em que o sangue escorre
desde o nascimento até o dia em que a terra cobre o paletó de madeira, o
velhinho de feição pesada, desacreditado de quase tudo em sua passagem neste
terreno, contava que em seu pequeno coração nunca conseguiu, por mais que
tentasse, colocar um cadeado, girar a chave e lança-la num universo de chaves
perdidas.
Aos sábios entendedores de suas
próprias vidas e das vidas alheias, aos ignorantes rabugentos como o velhinho e
aos que são bigornas e se passam por pena de pavão, fica o desafio de arriscar
a idade do velhinho, se ele está vivo, se ele realmente existiu ou existe e se
podem recolher os cacos do espelho em que o velhinho teimava em se deparar ou
sentar diante do mesmo espelho e procurar a porcentagem de teimosia que pode
existir em cada ser.
Antes de partir, o velhinho pediu
para avisar que se as línguas dos sábios entendedores da vida estiverem
queimando para responder prontamente, que os mesmos as colocassem na água
estocada da chuva, ou fizessem uma vaquinha entre eles para comprarem litros
d’água de alguma empresa da família dos governantes detentores de poderes
odiosos.
Sábios? Velhinho? Bigorna? Pena de
pavão?
Por onde andam?