Médias ou Mediações? A Leitura e a Escrita Como
Instrumentos Libertários
Michell da Silva*
O
universo da leitura e da escrita vem passando por transformações imensuráveis,
seja pela velocidade da informação, pela maior acessibilidade aos meios de
comunicação, pela ampliação de espaços de criação e pelo grande caos
sociocultural que estamos presenciando dentro das megalópoles.
O
processo acelerado das informações pode muitas vezes ser maléfico ao processo
de compreensão dos aprendizes, não porque os mesmos não sejam capazes de
assimilar as informações, mas a orientação para que os mesmos desenvolvam
autonomia e autocrítica para fazerem suas escolhas e conseguirem filtrar ou até
mesmo peneirar o que vão ou não ler é essencial para que se freie quando
preciso a quantidade de informações que recebem cotidianamente.
A
Literatura vem configura-se como ação potente para que crianças, jovens e
adultos passem a procurar as cores de um mundo que muitas vezes por inúmeras
razões permanece incolor. Despertar algo que existe dentro de cada aprendiz,
mas que ainda não veio ao mundo é uma das metas do ateliê de Literatura deste
educador que vos escreve.
Não
consideramos a leitura e a escrita segregadas de outras manifestações
culturais, acreditamos que outras linguagens artísticas se entrelaçam neste
processo. A leitura e a escrita por muito tempo foram artes negadas ao povo
pobre, aqui estamos falando de anos e mais anos de negação, porém não podemos
nos iludir que está negação está findada, pois o último senso feito pelo IBGE
em 2010 aponta aproximadamente 18 milhões de pessoas que não sabem ler nem
escrever no Brasil. Número alarmante para um país que deseja ser desenvolvido.
As condições econômicas interferem e muito neste processo, apesar da pesquisa nos
mostrar que este número já foi maior. Não podemos nos contentar com este mínimo
avanço. Com isso pretendemos proporcionar aos aprendizes leituras e escritas de
universos diferentes da escola de má qualidade, seja ela pública ou particular
e leituras que vão além das palavras grafadas nos livros e em outros suportes,
para que quando necessitarmos do domínio das mesmas sejamos capazes de
ultrapassar as barreiras visíveis e invisíveis da alfabetização. Tudo isso
ainda sem expormos a importância do ateliê de Literatura para o processo
criativo. Vejamos o quadro com as informações do último senso do IBGE.
A
arte não se limita ao academicismo em que muitas ocasiões pretende legitimá-la,
nem se limita ao total desprendimento destes templos. Mensurar ou querer por
imposição colocar aos aprendizes o que é ou que não é arte, é o mesmo que não
poder comer a sopa por falta de prato, ou seja, no ateliê de Literatura da
Fábrica de Cultura Vila Nova Cachoeirinha o aprendiz é quem estabelece seus
olhares para o que considera ou não arte. Oauxílio neste processo de criação
parte de interrogações e reflexões compartilhadas pelo educador, no sentido que
as relações sociais vão se dando nas vias de mãos-duplas e nas trocas destas
reflexões.
“À pergunta “O que é
arte?”muitos sábios já propuseram suas respostas, mas nunca nenhuma delas
conseguiu satisfazer a todos. A arte é uma dessas coisas que, como o ar ou o
solo, estão por toda nossa volta, mas que raramente nos detemos para
considerar. Pois a arte não é apenas algo que encontramos nos museus e nas
galerias de arte, ou em antigas cidades como Florença e Roma, a arte, seja lá
como a definimos, está presente em tudo que fazemos para satisfazer nossos
sentidos. Logo veremos que existe uma espécie de hierarquia em arte, e que
muitas qualidades se fazem necessárias para que uma obra de arte seja da mais
alta categoria. Mas não existe obra de arte genuína que não atraia, basicamente, os nossos sentidos – nossos
órgãos físicos de percepção - , e quando perguntamos “O que é arte?” estamos,
na verdade, perguntando qual é a qualidade ou peculiaridade de uma obra de arte
que atrai nosso sentido.” (READ, 2013, p.16).
O
processo criativo no ateliê de Literatura parte da realidade expressa no
entorno da Fábrica de Cultura e dos imaginários que cada aprendiz traz consigo.
Um dos papeis do educador que aqui vos escreve é o de apresentar algumas
experiências vivenciadas nos universos da leitura e da escrita para que os
aprendizes possam fazer relações com seus imaginários e ampliá-los. A
vulnerabilidade juvenil do entorno da Fábrica não pode nunca se restringir a
fatores única e exclusivamente econômicos, pois a vulnerabilidade social não
pode ser sinônimo de incapacidade criativa ou algo parecido. Enquanto o mercado
editorial luta para que a população leia cada vez mais e aumente os lucros do
mesmo, nós seguimos na contramão desta lógica, lutando para que os lucros sejam
intelectuais e potentes que vão além do capital econômico e sim que haja uma
grande ampliação do capital cultural.
A
construção do conhecimento nos exige irmos milhas e milhas além dos quadrados
dos ateliês. As estruturas arquitetônicas não suprem a vida, a troca, a
socialização, os impasses, o respeito mútuo e diversas outras formas de
contribuições para a vida de cada aprendiz. Na presença de papel e caneta, de
teclados e monitores, de celulares e tabletes podemos sim associar estas
tecnologias ao graveto e a terra batida, ao carvão e o asfalto, a cartolina e a
canetinha e assim por diante. Nesta viagem apresentaremos a importância da
construção de leitores e de leitores construtores tomando como referência
algumas reflexões de Michèle Petit
“O objeto de minhas
pesquisas não é tanto como podemos construir leitores, para retomar essa
expressão, mas principalmente como a leitura pode ajudar as pessoas a se
construírem, a se descobrirem, a se tornarem um pouco mais autoras de suas
vidas, sujeitos de seus destinos, mesmo quando se encontram em contextos
sociais desfavorecidos. Interessa-me particularmente descrever como
apropriando-se de textos que vocês editam, ou fragmentos de textos, crianças e
adolescentes, mulheres e homens elaboram um espaço de liberdade a partir do
qual podem dar sentido a suas vidas, e encontrar, ou voltar a encontrar, a
energia para escapar dos impasses nos quais eles se sentem encurralados.”
(PETIT, 2013, p.31).
Não há como
quantificar os valores que a leitura e a escrita trazem para as crianças,
jovens e adultos com exatidão. Enquanto houver esta não exatidão é que os
passos adiante poderão ser dados, pois limitar o que estas pessoas devem ou não
ler é engessar o imaginário doutrinando a um único modo de pensar, isto é, não
precisamos de exatidão e quantificação e sim de expansão de horizontes
infinitos para que o imaginário possa transbordar os limites impostos por
aqueles que se julgam guardiões dos saberes.
As transformações que ocorrem nos
aprendizes quando despertam o interesse pela leitura e pela escrita são
mágicas. Muitos vivem em ambientes de negação, seja na família, na escola, na
sociedade, quando compreendem que o ateliê de Literatura é um lugar para
exercitar a cidadania e ser livre, instantaneamente tornam-se mais
questionadores e curiosos. Mas, procuramos deixar nítido que não é somente a
compreensão que liberta os imaginários, e sim o sentir, os atos de apropriação
do conhecimento e também do espaço público.
A Literatura por si só, assim como o
livro por si só não é garantia de apropriação ou liberdade dos aprendizes e não
aprendizes. Atualmente ouvimos e lemos muito sobre a famosa mediação de
leitura, ou a produção de textos, estes termos carregam coerência em
determinados contextos, em outros não fazem o mesmo sentido ou não surtem o
mesmo efeito. No ateliê de Literatura de Fábrica de Cultura Vila Nova
Cachoeirinha, com o passar do tempo, preferimos por meio de nossas observações,
ao invés de trabalharmos com a mediação de leitura, trabalharmos com a
apresentação da leitura e, ao invés da produção de textos, trabalharmos com as
criações de texto. As práticas são próximas, mas não iguais, pois consideramos
que a mediação muitas vezes pode retrair o aprendiz e o mesmo não ser livre
para fazer suas escolhas, já em relação à produção preferimos optar pela
criação, pois o ato de produzir pode remeter a série, a massa, e dar
continuidade a termos explorados pelo mundo capitalista. Por isso a criação de
textos amplia a margem para diferentes tipos de tempos, principalmente o tempo
de apreciação de cada aprendiz.
Sendo assim
“Dúbia,
a literatura provoca no leitor um efeito duplo: aciona sua fantasia, colocando
frente a frente dois imaginários e dois tipos de vivência interior; mas suscita
um posicionamento intelectual, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo
afastado no tempo ou diferenciado enquanto invenção produz uma mobilidade de
reconhecimento em quem lê. Nesse sentido, o texto literário introduz um
universo que, por mais distanciado do cotidiano, leva o leitor a refletir sobre
sua rotina e incorporar novas experiências.
A
leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, na medida em
que permite ao individuo penetrar o âmbito da alteridade, sem perder de vista
sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas
expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação mas
decifra por meio do intelecto. Por isso trata-se também de uma atividade
bastante completa, raramente substituída por outra, mesmo as de ordem existencial.”
(ZILBERMAN, 2008, p.23).
Ao
apresentar os livros, as imagens e os universos para os aprendizes são de
extrema importância que o educador tente cativar e despertar a curiosidade dos
mesmos através de uma mediação temporária e não por uma média constante. Fazer
média ao apresentar a leitura é o mesmo que construir uma guilhotina que esteja
pronta para decepar o processo criativo. A mediação temporária é interessante
pelo fato de ser uma espécie de ponte entre o que está sendo apresentado para
leitura e na leitura e, posteriormente aos desdobramentos da escrita, só que
esta ponte não pode e deve ser única, por isso mediação temporária, em
determinado período o educador faz a ponte e em outros períodos os aprendizes
constroem suas pontes e atravessam.
Em
meio a estes processos criativos nos deparamos com crianças, jovens e adultos
não alfabetizados. Acreditamos que a alfabetização é essencial e ideal para
estes processos, porém percebemos que as imensas lacunas entre o ideal e o real
devam ser preenchidas de alguma maneira, e de preferência com práticas que
estimulem estas pessoas compreenderem os códigos alfabéticos para terem
oportunidades iguais de viajarem nos universos das letras e sentirem onde eles
podem as levar.
As
caminhadas nestes terrenos não são fáceis, contudo o educador que vos escreve
não pode simplesmente fazer médias no que diz respeito às apresentações das
leituras. Novamente a mediação provisória entra com força total, pois neste
período de não alfabetização o mediador tem como grande desafio transpor
aqueles códigos de maneira agradável e impactante aos ouvintes, neste caso, os
não alfabetizados
“Não é necessário esperar o longo
caminho da alfabetização para conhecer as histórias guardadas nas estantes das
bibliotecas. A criança que se beneficia do saber dizer de um mediador pode escutar textos escritos. Essa habilidade
de comunicar um texto pertence a pessoas letradas que podem tratar os textos gráficos graças à sua
capacidade de ler”. (BAJARD, 2014, p.93).
A
liberdade de expressão através das palavras é uma das pontas das flechas
lançadas aos aprendizes no ateliê de Literatura. O ato de escrever que seja
vivo e transparente e que dialogue com as relações sociais construídas dentro e
fora da Fábrica de Cultura é de grande valia no trajeto percorrido para que as
práticas libertárias sejam compartilhadas.“Quanto mais consciente faça a sua
História, tanto mais o povo perceberá, com lucidez, as dificuldades que tem a
enfrentar, no domínio econômico, social e cultural, no processo permanente da
sua libertação.” (FREIRE, 2009, p.40-41).
Ficam
aqui expostas partes das reflexões trazidas pelos aprendizes e pelas
experiências deste educador que vos escreve. No olho do furacão e entre
redemoinhos que são constantes entre nós que nos dispomos a pensar nas lacunas,
nas extremidades, nos distanciamentos, nas aproximações entre o real e o ideal,
entre as médias e as mediações, entre as produções e as criações, fazendo o
possível para alcançarmos juntos a arte de transbordar o imaginário, fica neste
breve texto uma força para que continuemos rumando para oportunidades mais igualitárias
nos universos da leitura e da escrita como instrumentos libertários.
Referências
Bibliográficas
BAJARD,
Élie. Da escuta de textos à leitura.
2. ed. São Paulo: Cortez, 2014. 128 p. (Questões da nossa época).
FREIRE,
Paulo. A importância do ato de ler: Em
três artigos que se completam. 50. ed. São Paulo: Cortez, 2009. 87 p.
(Questões da nossa época).
PETIT,
Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao
espaço público. São Paulo: Editora 34, 2013. 165 p.
READ,
Hebert. A educação pela arte. 2. ed.
São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2013. 366 p. (Mundo da arte).
ZILBERMAN,
Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da.Literatura
e pedagogia: Ponto & Contraponto. 2. ed. Campinas: Global, 2008. 72 p.
*É estudante de Pedagogia da Faculdade de Educação - FEUSP da Universidade de São Paulo, é Técnico Em Biblioteconomia formado pelo SENAC - Centro de Gestão e Tecnologia Educacional (2002). Atualmente faz parte do Coletivo Cultural Poesia Na Brasa e, é Educador de Literatura na "Fábricas de Cultura do Estado de São Paulo", onde desenvolve diversas atividades culturais e educacionais. Tem experiência em biblioteconomia, cultura, informação e educação.
Texto apresentado após a Comunicação Oral no 1º Seminário Interno das Fábricas de Cultura.