AS
RESISTÊNCIAS ARTÍSTICO-CULTURAIS EM MEIO
AOS PROCESSOS DE EXTERMÍNIOS E RETROCESSOS
Por Chellmí Jep
02.05.2019
Tudo
parte de inúmeros inconformismos vitais.
Poderíamos começar esta nossa contribuição
com diversas perguntas e milhares de questionamentos, como: O que é Arte? Para
que serve a Arte? Arte e política são potências ou negatividades? Quem
determina o que é ou não é Arte? O Brasil respeita seus artistas? Sua família
te respeita, sendo artista ou não? O Impacto que as obras causam nas
instituições, são os mesmos que elas causam nas ruas? Quem define Arte como
Arte, o artista, o observador ou as pesquisas acadêmicas?
Sim, poderíamos iniciar tentando
esmiuçar cada interrogação trazida, sendo estas interrogações expressas nestas
linhas ou não. Momentaneamente deixamos estes reles questionamentos como
faíscas próximas de barris de pólvora para que possamos nos aprofundar do que
concretamente nos atravessa e do que subjetivamente nos alimenta.
· São Paulo e os pesadelos que se
sobressaem aos sonhos
São
Paulo é uma cidade conhecida pela sua diversidade, mundialmente é vista como o
coração financeiro do Brasil e até chega ser roteiro de viagem para muitos
gringos. Sem dúvida SP tem sua particularidade no mundo, assim como Arco Verde
em PE também, assim como Chorrochó na BA também e assim por diante. O que
tentamos enfatizar aqui são as evidentes contradições dos pesos e das levezas
que se dão para determinadas localidades. Ao mesmo tempo em que a capital
paulistana traz sua diversidade escancarada diante de qualquer olhar, também
traz as bombas relógios carregadas de ódios e preconceitos pelo fato de boa
parcela de seus habitantes não conseguirem conviver com as diferenças. Quando
falamos em diferenças e convivências, extrapolamos os limites direcionados às
manifestações artísticas e transbordamos as vaidades das curadorias de Arte,
estamos falando diretamente de questões sociais, econômicas e religiosas que
fazem com que a cidade seja alimentada de indelicadezas e atrocidades que não
necessariamente são perceptíveis pelos cidadãos que somente estão preocupados
em obedecer e se encurvar diante do Estado e permanecem sufocados pelas suas
cargas de sobrevivência, reproduzindo matanças enquanto os políticos eleitos
sejam eles municipais, estaduais ou federais estão comendo bastante, viajando
bastante, com muita grana nas contas e muitas folgas semanais para usufruírem
dessa grana. Fica a pergunta, um ser humano que não respeita a homoafetividade,
por exemplo, que está nas engrenagens aterrorizantes da cidade em que vive, ele
será atravessado por um texto de oito a dez páginas ou no momento em que o muro
da casa dele for *pixado com dizeres
anti-homofóbicos? Exatidões ou verdades na resposta só podem ser trazidas por
sábios e sábias e não por quem escreve e questiona como vem sendo feito aqui.
O
discurso de não concordância ao que é diferente de um universo engessado e
manipulado soa como loucura, burrice, idiotice, cegueira e tantos outros
adjetivos depreciativos alimentando o discurso reacionário de aversão ao que é
humano e real, a pobreza, a negritude, o machismo, a homossexualidade, as
religiões de matrizes não europeias, a Arte fora das instituições e tantas
outras manifestações que poderiam ser inclusas aqui.
Existem
regiões de SP que jamais farão parte de SP, como assim?
Favela
da Onça, Taipas, Zona Noroeste de São Paulo. Comunidade sem apoio algum do
Estado, apoio básico, saneamento, saúde, educação, alimentação e muito mais.
Regiões como esta, o Estado não age, a não ser com a força truculenta da
policia e dos oficiais de justiça para desocupação. Carregamos algumas
convicções sim, apesar de sermos avessos às convicções como detentores do
saber. Carregamos as convicções de que nenhum morador ou moradora daquela
favela gosta de não ter água encanada em seus barracos, de que não se
vangloriam de ver ratos passando em suas moradias, de não receberem cartas em
seus respectivos endereços, de terem dificuldades imensas para trabalharem
formalmente e sim, carregamos estas convicções por estarmos preocupados e
dispostos para tentar transformar realidades tão injustas a partir da presença
e não somente das rebuscadas pesquisas que dão títulos que legitimam lugares de
fala, isto é, mais legitimo que a fala de cada morador ou moradora daquela
comunidade não existe e não é o grau de instrução que determina e determinará
quem deve ou não falar e se expor.
A
favela da Onça é um dos milhares de exemplos que podemos pegar como referência
em São Paulo e afirmar que jamais esta será uma região de pertencimento a
cidade aos olhos do Estado, no máximo ali é mais um alvo de extermínio.
Salientamos que esta região não existe diante do Estado, não dos nossos olhares
e ações.
Ressaltar
meritocracia, chamar habitantes de locais iguais a Favela da Onça de incultos e
desfavorecidos é no mínimo não ter ética com seus próprios anos de vida nessa
terra. Vivemos atualmente o momento mais complexo politicamente desde a suposta
redemocratização. Evidenciamos aqui o termo “suposta redemocratização” sem
fazer juízo de valores às lutas de movimentos sociais e partidos de esquerda
para que se interrompesse o período ditatorial em que as manifestações eram
coagidas pelos detentores do poder, os militares, e infinitas vidas foram
tiradas pelo glamour do poder e do escorrimento de sangue. Suposta
redemocratização é utilizado por conta de desde as Diretas, as alas
conservadoras que detinham, de fato, os privilégios de serem intocáveis, ficarem
inconformados com partidos populares terem a oportunidade de governarem de
acordo com os interesses da maior parte da população no Brasil, os pobres.
Não
teríamos como nos aprofundarmos sobre questões tão vitais que partam ou não do
universo artístico sem nos colocarmos no tempo presente e tampouco fazermos
anacronismos com tais tempos. O momento é literal, ou é oito ou oitenta e por
conta da literalidade e da falta de empatia dos seres que temporariamente estão
no poder, preferiram 80, oitenta tiros assinados embaixo por eleitores que
sofreram ou sofrerão com toda esta literalidade.
O
ex-prefeito e atual governador de São Paulo, João Dória instaurou na população
garras fatais em pessoas que pela própria precariedade de vida poderiam
despejar seus ódios facilmente em outros lugares, ódios estes que não
atingiriam diretamente sua má administração e falta de sensibilidade com a
população pobre. Uma verdadeira avalanche de repressão foi criada contra os
pixadores e pixadoras e grafiteiros e grafiteiras da cidade e a brutalidade só
aumentou.
Essa
é uma forma de apropriação das manifestações artísticas em meios urbanos para
justificar a falta de diálogo com as questões que a sociedade traz e fazer o
que o Estado não faz declaradamente aos olhares das pessoas que não se
aprofundam nestas questões, mas faz e ferozmente de maneira sutil e velada,
colocar pobre odiando pobre e proporcionar o extermínio entre a própria pobreza
e o Estado nem sequer colocar as mãos. Sendo assim, os riscos de quem está se
manifestando nas ruas aumenta incalculavelmente, pois a partir disto não é
somente o Estado contra as manifestações, são as marionetes do Estado contra
quem se movimenta na contramão da opressão.
Até
aqui colocamos as artes visuais em foco, mas podemos pensar nitidamente em
outras manifestações, o teatro, a dança, a própria literatura que em 2011
sofreu com os fechamentos de bares onde ocorriam importantes saraus na
periferia paulistana, na gestão municipal do Kassab. Chega a ser vexatório e
humilhante falarmos ou escrevermos que até esperamos estes posicionamentos dos
políticos eleitos, mas talvez mais humilhante e muito mais preocupante a camada
pobre da população fazer o favor de limpar as mãos do Estado e sujar suas
próprias mãos de sangue por conta de um retrocesso reflexivo.
O
skate, a pixação, o graffiti, o funk, as batalhas de mc’s, o reggae, o dub, o
maracatu e tantas outras manifestações artístico-culturais são marginalizadas
não somente nas geografias das cidades brasileiras, elas são marginalizadas
também por conta das forças contidas em suas criações e em suas manifestações.
Entre
Beethoven e Mc Guimê a lacuna não fica evidente somente no tempo cronológico ou
no gênero musical, o maior hiato está nos distanciamentos impostos pelas elites
financeiras e pelas elites pseudointelectuais que impõem a qualquer custo que
as sinfonias são autenticas manifestações e os batidões que mobilizam a
juventude não. Retornando um pouco às convivências com as diferenças,
idealmente Guimê e Beethoven poderiam ocupar um campo comum na música, ser
música, mas entre o ideal e o real também existem lacunas muito escancaradas,
pois se até no Microsoft Word o nome do MC é grifado em vermelho como palavra
inexistente e o nome do clássico, por que na sociedade que impõe padrões de
gostos o Guimê não ficaria em evidência vermelha? Obviamente que aqui
utilizamos uma simples analogia para exemplificar e adentrar numa discussão que
não é somente territorial e sim ideológica.
Nelson
Rodrigues nos alertou sobre o Brasil e seu complexo de vira-lata e recentemente
Lula reascendeu a importância de nos debruçarmos sobre tal complexo. Tanto
Nelson Rodrigues quanto Lula foram e são odiados por algum dos lados, destros e
canhotos, e o que há em comum entre eles e esta tentativa de contribuição em
forma de texto é o inconformismo e o enfrentamento diante as adversidades de um
sistema político que tem como eleito um representante federal de parte da
população que quer pilotar o país acelerando seus achismos e freando anos de lutas e
construções para uma nação menos desigual.
· Os heróis nacionais, as capitanias
hereditárias, e as ancoras que a elite jogou para os pobres
Desde
1994, o dia 1º de maio passou a ser lembrado não somente pelas lutas
trabalhistas, mas também pela fatídica morte de Ayrton Senna, na Itália.
Não
haveria problema algum se o fato de que o piloto era uma celebridade por conta
de um esporte extremamente elitista e que vinha de uma família que podia bancar
seu esporte. A questão aqui não é gostar ou não da figura de Ayrton Senna,
gostar ou não de corridas de carro, a questão é como se mascara através das
mídias, problemas mais urgentes no nosso país. De 1990 até 1994 o país estava
um caos por conta da inflação, moeda inconstante, economia com a corda no
pescoço, processo de impeachment de Collor, 111 mortos na Casa de Detenção do
Carandiru e o Plano Real e as privatizações pelo então presidente FHC. Vejam, o
mascaramento e as encobertas das reais situações do país não veem de hoje, isso
porque não estamos nos reportando a outros períodos da história. Ayrton Senna
foi um grande piloto e provavelmente um grande ser humano, porém heróis de
verdade eram aquelas famílias nordestinas que conseguiram fazer seus filhos
vingarem sem a menor infraestrutura diante da seca e ainda continuarem
entregando-os para SP para construir palacetes aos que depois de seus serviços talvez
fossem os próximos exterminados.
Perdemos
a pouco tempo a grandiosa Raquel Trindade, e você um pouco menos desatento deve
estar pensando, quem é essa?
Raquel
Trindade, filha de Solando Trindade, família Trindade, de grande importância
para a história da Arte e da Cultura em SP, no Brasil e no mundo, assim como
Patativa do Assaré, Marielle Franco, Grande Otelo, Mano Brown, Emicida e tantos
outros que aqui não caberiam. A observação aqui também não é a de que estes e
estas citados e citadas acima seriam ou não heróis ou heroínas, a observação
parte de quem determina quem é ou não representativo para o povo. Pelé é uma
figura mundialmente conhecida, porém nunca se posicionou de maneira positiva em
relação a sua negritude. Neymar, o ídolo da molecada agride torcedor quando
contrariado e quando questionado. Os heróis não são escolhidos pelo povo, pelos
pobres, a elite escolhe e o pobre abraça. Um dos caminhos desta reflexão
exposta com palavras em forma de texto é o de questionar como as manifestações
artísticas e culturais estão intimamente ligadas com as manifestações
politicas, e entendamos aqui como politica não somente as políticas partidárias
e sim as vivências políticas do dia-a-dia, comprar, vender, se relacionar,
reivindicar, enfim, ações politicas.
Enquanto
não soltarmos as ancoras jogadas pela elite, não iremos subir do fundo do mar
para respirar, continuaremos sufocados e morrendo afogados em águas alheias.
Há
um cansaço físico e mental por parte da população que luta contra governos tão
autoritários. Ouvimos constantemente de vários lados que temos que ser
resistência, que temos que resistir e não nos deixarmos abater pelas opressões.
Geralmente quem salienta o ato de resistência está num centro acadêmico, numa
ONG caridosa ou atrás do teclado em alguma rede social. Talvez alguns nunca
saberão o que é ser resistência sem moradia, com a barriga vazia, sem a marmita
pronta pela mãe quando chegar em casa. E com certeza muitos nunca saberão o que
é ser negro, ser negra num país racista, morar em bairros que àqueles que pedem
resistência jamais irão pisar. É cultural num país como o Brasil, ser
obediente, abaixar a cabeça para uma elite que determina o que gente faz ou
deixa de fazer.
Este
singelo texto vem com uma proposta de desobediência, de não aceitação do
suposto estimulo do playboy por resistência. Reafirmamos que uma pixação, uma
intervenção artística que não seja de abraçar árvore nem monumento, que corpos
como ações circulando espaços totalmente negados, sejam as ações mais diretas
antes das militâncias de trabalhos de base num período de 15 dias entre o
primeiro e o segundo turno de 4 em 4 anos.
*A
utilização da grafia “pixação” com “X” foi escolha do autor por ser utilizada
pelos próprios praticantes e considerada manifestação contemporânea e
tipicamente brasileira.